Reportagem publicada originalmente na versão impressa da Revista Noize.
Localizada no extremo leste da cidade de São Paulo, a Cidade Tiradentes leva a marca da desigualdade social em sua gênese. O distrito possui o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina. São cerca de 50 mil unidades, a maioria construída na década de 1980 por empreiteiras privadas e pela Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab), que aproveitaram o último financiamento do Banco Nacional da Habitação antes de sua extinção, em 1986.

Criada há 35 anos, a área foi desenhada a 35 km do centro de São Paulo como um conjunto monofuncional do tipo “bairro dormitório”, e poucas articulações com o centro da cidade para deslocamento de populações atingidas por obras públicas — algo semelhante ao que ocorreu com a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Além dos vastos conjuntos habitacionais, a Cidade Tiradentes ainda é formada por favelas e loteamentos habitacionais clandestinos. Essa desigualdade no âmbito urbano e habitacional se estendem para a expectativa de vida como um todo.
Uma pesquisa divulgada em 2019 pela Rede Nossa São Paulo indicou que os moradores da Cidade Tiradentes vivem em média 57,3 anos — 23 anos a menos do que os moradores de Moema, bairro nobre da Zona Sul, e 11 anos a menos que a média da cidade. O bairro estava destinado se tornar um espaço estigmatizado e segregado. Mas um grupo de músicos ousados e inconformistas, amparados por um gestão cultural exemplar, contrariaram as estatísticas e fizeram a voz da Cidade Tiradentes ser ouvida em todo Brasil, transformando-a em um epicentro da história do funk paulistano.
A OSTENTAÇÃO SE ESPALHA NA INTERNET

Em paralelo à cena que existia na Baixada Santista, a Cidade Tiradentes foi a porta de entrada do funk na capital paulista. A dupla Backdi e Bio G3 foi pioneira com a música “Bonde da Juju” (2008), um som que renovou o movimento funk. Na época, muitas letras falavam sobre questões ligadas ao crime — um reflexo dos ataques realizados pelo PCC em maio de 2006. “Bonde da Juju” mudou o jogo ao falar sobre o poder do dinheiro.
A dupla nem imaginava, mas aquela música, nascida de uma brincadeira de freestyle na balada, seria fundamental para dar corpo à vertente do funk ostentação. “Antes havia outros funks que falavam de dinheiro, roupa, bebida. Mas a nossa música foi a primeira de São Paulo e foi o marco inicial para o movimento funk ostentação”, diz Bio G3. “A primeira vez que ouvi esse termo foi numa matéria do jornal Diário de São Paulo sobre nós e outros artistas na qual o jornalista apelidou de novo funk ostentação. Desde então adotei esse nome e comecei a falar nos shows, nas entrevistas, nas redes sociais. Isso acabou viralizando e se tornando um termo usado pelos funkeiros e um estilo dentro do funk”.
O sucesso de “Bonde da Juju” fez Backdi e Bio G3 rodarem o Brasil com shows em quase todos os estados. A cena de São Paulo era tão incipiente que muitas vezes pensavam que a dupla era carioca. Essa expansão da dupla — e do funk — aconteceu com base apenas na visibilidade gerada pela internet.
A gente só queria que a nossa música chegasse em algum lugar, então a gente disponibilizava todo nosso conteúdo gratuitamente.
Bio G3
“Acredito que o funk foi pioneiro a usar a internet como meio de comunicação gratuita. Enquanto os outros segmentos, as grandes gravadoras e produtoras estavam preocupados em vender a sua música e seu CD, a gente só queria ser ouvido”, explica Bio G3. “A gente só queria que a nossa música chegasse em algum lugar, então a gente disponibilizava todo nosso conteúdo gratuitamente. Postava no Orkut, YouTube, 4shared e em sites especializados de funk como o funkmp3.net, onde cheguei a ter 50 mil downloads em uma única faixa. A gente fazia isso em meados de 2006. Foi um ato revolucionário”, defende.
Co-fundador do funkmp3.net, Dennis Romano montou o site na lan house em que trabalhava. A ideia era abrigar o emergente funk de São Paulo — em contraste com outros sites como o Funk Neurótico que tinham quase exclusivamente funk carioca. Dennis lembra que o Brasil vivia uma inclusão digital. “O pessoal estava começando a poder comprar um computadorzinho parcelado e conciliou também com o boom do mp3 player. A música se tornou portátil. Aí foi o momento certo que o negócio começou a ganhar uma proporção”, contextualiza.
O funkmp3 foi um dos grandes divulgadores de “Bonde da Juju”, que refletia o momento de ascensão social no Brasil. “Na minha percepção, foi o primeiro funk que apareceu com um assunto que não era crime ou morte. O primeiro funk que chegou falando de comprar, de ter as coisas”, analisa Dennis. “Era diferente e acendeu a criatividade da galera de falar sobre poder de compra, de consumir. A gente estava naquela época que o governo Lula estava no topo, com todo mundo parcelando as coisas, comprando as coisas que antes era impossível”.
O FUNK COMO POLÍTICA CULTURAL
Além de cantar, Bio G3 também atuava como produtor de shows na Cidade Tiradentes. Certa vez ele estava preparando um evento que contaria com apresentações de grandes MCs da baixada santista, como Duda do Marapé, Neguinho do Kaxeta, Felipe Boladão e MC Careca. O show já estava sendo divulgado, com cartazes colados no bairro quando Bio recebeu a notícia de que o evento foi interditado pela subprefeitura. Irritado, ele foi tirar satisfação e entender o que acontecera. Foi quando conheceu o então subprefeito Renato Barreiros e foi formada uma parceria para incentivar o funk local com uma política cultural popular e inclusiva.

“Ele me recebeu muito bem e abriu a minha mente”, lembra Bio G3. “Eu estava organizando um evento no qual eu teria uma média de público de duas a três mil pessoas em uma quadra fechada que só tinha uma entrada e saída. O Renato Barreiros teve a preocupação de me explicar a decisão de interditar, inclusive mostrando por imagens o local do evento que se houvesse alguma confusão ali, as pessoas seriam esmagadas. Se acontecesse um incêndio, eu não teria nenhum controle sob o fogo. Eu tinha vontade de fazer uma coisa certa, mas estava fazendo de forma errada”, reconhece.
Nesse encontro, Bio G3 e Renato Barreiros desenvolveram o Festival de Funk Canta Tiradentes, que ocorreu anualmente de 2008 a 2010. “Conversamos e montamos um regulamento: apenas músicas sem apologia a crime ou droga e com linguagem sexual moderada”, conta Renato, que conseguiu produzir o evento mesmo sem receber um real da Secretaria Municipal de Cultura comandada à época por Carlos Augusto Calil.
“Uma coisa que me incomodava era que vira e mexe aparecia uns palcos no bairro. E quem pagava esses palcos? Se o Estado não abraçar o funk, as pessoas vão procurar quem tem dinheiro. E geralmente quem tem dinheiro na periferia está ligado à criminalidade”, diz Renato. Além do Festival de Funk, a subprefeitura regulamentou bailes de rua, estipulando horário para acabar e segurança. Outra medida importante foi a implementação em 2010 de um estúdio público na Estação da Juventude, um Centro da Criança e Adolescente que, além de cursos tradicionais como inglês e artes, tinha um estúdio para realizar gravações musicais gratuitas com aulas de especialista em funk: o DJ Tecyo Queiroz, lenda das MPCs do funk paulista, produtor de músicas de artistas como MC Dede, MC Nego Blue e do início da carreira da MC Tha.

“Em vez de ir contra o baile funk na Cidade Tiradentes, ele resolveu organizar o baile, criando o ‘permitidão’: um baile com uma super estrutura de som, iluminação, com alvará e autorização para acontecer, horário para começar e acabar e com toda segurança da guarda civil, polícia militar, corpo de bombeiros”, resume Tecyo. “Nunca fizeram algo tão positivo para o funk em São Paulo como foram os eventos organizados pelo Renato. Até hoje eles são comentados de forma positiva e com muita saudade de quem viveu essa época”, celebra o DJ. O MC Bio G3 também destaca a importância dessas ações da subprefeitura capitaneadas por Renato Barreiros. “Ele foi um cara visionário e exemplo para todas as pessoas do poder público. Se aproximar do movimento que muitas vezes é marginalizado pode trazê-lo para dentro da legalidade, pode criar um mercado, gerar empregos, gerar pagamento de impostos”, defende.
CASA DE TALENTOS
O efeito dessa política cultural inovadora não demorou para aparecer. No primeiro Festival de Funk da Cidade Tiradentes foram revelados os MCs Nego Blue e Dede. Este último trabalhava como gari, depois explodiu com a música “Olha o Kit” e hoje é parte do casting da KondZilla Records. Em 2012, Dede e Nego Blue chegaram a fazer uma parceria inusitada cantando com a Orquestra Jazz Sinfônica sob a regência do Maestro Galindo em um projeto das Fábricas de Cultura da Zona Leste. Outros artistas da Cidade Tiradentes foram despontando, como o MC B.O., sucesso com a música “Cai no Mundo”, e o MC Kelvin, cantor mirim que emplacou “Vai a Pé que Eu Vou de Fusca” – o primeiro MC de São Paulo a participar do DVD da Furacão 2000.
Assim a Cidade Tiradentes tornou-se um reduto do funk. “O funk ostentação se expandiu de verdade pelo Brasil a partir da Cidade Tiradentes e daí começaram a surgir mais e mais MCs da época, como MC Danado, MC Daleste, MC Guimê, entre vários e vários outros”, diz Tecyo. O MC Bio G3 concorda. “Esses artistas tiveram uma importância gigantesca porque esse movimento criou um corpo de funk em São Paulo. A partir daí a gente começou a dar a cara pros outros estados, a mostrar pro Brasil — até pro Rio, que era o único reduto de funk — que existe funk em São Paulo”.

Outra artista que mostrou as caras nesse cenário foi a MC Tha. O então subprefeito Renato Barreiros lembra que tomou conhecimento da jovem cantora quando fazia a filtragem das letras de música do primeiro festival de funk. “Chegou um papel de carta rosinha, com a letra bem redondinha. Era tudo menino que se inscrevia. Aquilo destoava muito!” Fiquei curioso para saber quem era e aí a Tha foi aparecendo. Ela foi no festival, ainda muito tímida. Mas você via que a onda dela não era a ostentação. Ela era muito talentosa, mas não era por aí. Sempre ouviu muito MPB, Cazuza, então não dava para ela ficar cantando sobre Oakley e Red Bull”.
Foi ele (Renato Barros) que me fez perceber quanto sou boa na escrita. Ele me deu perspectiva de vida.
MC Tha
MC Tha diz que Renato foi “como um pai” para ela. “Ele entendia minhas diferenças ali no no meio daquele monte de menino e me mostrava as ferramentas pro meu crescimento e entendimento de um mundo maior do que aquele. Eu tinha um blog que criei pra escrever sobre Funk na Tiradentes e foi ele quem me incentivou, me deu uma câmera pra documentar tudo. Foi ele quem me fez perceber o quanto sou boa com a escrita e quem me deu o emprego nas Fábricas de Cultura. Ele me deu perspectiva de vida”, diz Tha. Vale lembrar que foi na Fábrica de Cultura que Tha conheceu o produtor paraense Jaloo, um dos seus principais parceiros criativos.
Mas o funk da Tiradentes não parou no tempo. O distrito tem um dos maiores bailes de rua de São Paulo, o Baile das Casinhas, e a história de superação de nomes como Backdi e Bio G3, Nego Blue e Dede ainda são inspiração para os jovens da região que sonham com a carreira na música. É o caso do jovem MC RDL, de 21 anos, que começou a curtir funk por ser um dos ritmos predominantes na comunidade. “Todos esses MCs são inspiração pela história que conseguiram criar e conquistar através do funk. Escuto muito a música dos caras e já vi todos eles no palco. O Nego Blue, inclusive, fez um show na rua onde eu moro mesmo”, conta.
O nome RDL é uma abreviação do local onde mora, a Rua da Lama. E apesar de se inspirar nos relíquias da ostentação, seu estilo mais forte é o funk consciente. A música “Evoluiu”, por exemplo, fala dos progressos (econômicos, sociais e intelectuais) do povo na periferia. “O companheiro que quando fumava brisava nas teses da constelação/ Físico monstro cursado na USP, na prova final melhor pontuação”, diz um dos versos. “Eu me identifico melhor com as músicas conscientes, que passam uma mensagem positiva e uma visão de crescimento pra quem escuta. “Evoluiu foi criada para mostrar a evolução e para mostrar a quem está sonhando que é possível conquistar a sua melhora”, explica o MC RDL.
Enfrentando a desigualdade social e o isolamento do centro, os artistas inquietos da Cidade Tiradentes criaram uma forma de arte e comunicação particular. “Com muita certeza o afastamento entre a periferia e o centro gera riquezas culturais que só a gente consegue desenvolver, embora tenha toda a problemática social que sabemos”, ressalta MC Tha.
Estamos mil anos a frente em questão de tecnologia criativa por meio da precariedade
MC Tha
“Não é atoa que a nossa cultura é tão roubada, porque ninguém mais em outra atmosfera, mais beneficiada que seja, consegue pensar como a gente pensa. As periferias do mundo todo pulsam a todo instante. Estamos mil anos a frente em questão de tecnologia criativa por meio da precariedade. Falta reconhecimento dos corpos que pensam e criam diretamente essas manifestações”.
RDL JOVEM PROMISSOR, MLK TEM VISÃO AVANÇADA NAS LETRAS.
RDL revolucionário
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