* Para esta reportagem foram criados nomes fictícios com o objetivo de preservar a identidade dos entrevistados.
É difícil pensar em um baile funk de favela sem lembrar automaticamente dos paredões de som, sistemas sonoros de alta potência formados por várias caixas empilhadas que tomam conta dos espaços públicos das periferias onde essas festas costumam acontecer. E quem já foi a um baile como esse, sobretudo no Rio de Janeiro, sabe que o volume do som produzido por eles é quase ensurdecedor, mas é graças a essa potência dos alto-falantes que a experiência da música e do ritmo é, literalmente, sentida no corpo.
Erguer uma ou duas paredes de som para realizar um baile de favela semanal na comunidade representa muito mais do que uma simples festa. Essa cultura de rua é um ritual que se aprofunda também em questões de subsistência, pois além de ser um espaço de lazer e desprendimento da rotina diária dos frequentadores, em sua maioria moradores das próprias favelas, é também uma forma de geração de renda para várias pessoas.
Quando os bailes não acontecem o impacto econômico é sentido em diversos ramos do comércio da favela, como os bares, os depósitos de bebida, os salões de beleza, as lanchonetes, os mototaxistas, os barraqueiros, os vendedores de bala, e toda a logística que possibilita a existência da festa — locação de som que compõe os paredões, as tendas que cobrem o espaço do baile, a estrutura das barracas, os distribuidores de gelo, as entregas de bebidas etc.
Em dia de baile eu fazia 60 unhas no sábado, de 8h da manha até 23h30.
Marcela Souza
Um exemplo dessa relação aconteceu em 2019 com a suspensão do Baile da Gaiola por conta da prisão do DJ Rennan da Penha. O encerramento do baile, que já chegou a reunir 25 mil pessoas na Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha (RJ), acarretou em uma redução drástica e imediata no faturamento do comércio local da comunidade. Para Marcela Souza, manicure de 24 anos, o fim do Baile da Gaiola afetou consideravelmente a demanda pelo seu trabalho: “Em dia de baile eu fazia 60 unhas no sábado, de 8h da manhã até às 23h30, mas depois que parou de ter baile, passei a fazer no máximo 20. Dava até pra tirar hora de almoço. Antes eu comia uma bobeira entre uma unha e outra”, conta.
Além de Marcela, Pâmela da Silva, cabeleireira de 27 anos e com dois filhos, também sentiu a falta do baile: “Lembra daquele aniversário do DJ Rennan que foi maior loucura? Eu fiz cabelo até 3h da manhã! A última cliente saiu, corri pra casa, me arrumei, botei minha Melissa e fui belíssima pro baile, saí de lá 12h”, relembra. Os dois depoimentos ilustram como a proibição do Baile da Gaiola foi significativa para o comércio da Vila Cruzeiro.

Outra classe afetada, e de forma ainda mais acentuada, foi a dos barraqueiros, responsáveis por arcar financeiramente com a estrutura do baile. Marcelo, barraqueiro em dias de sábado na Gaiola, lembra o quanto foi prejudicado: “Foi um baque no meu caixa. Eu fazia um bailezinho na Baixa (do Sapateiro, no Complexo da Maré), mas as contas mesmo eu pagava com o dinheiro da Gaiola. Baile mais cheio, vendia muito mais. Quando parou de ter eu tive que fazer de tudo pra conseguir pagar as contas no fim do mês”, revela.
E mesmo com o fim do Baile da Gaiola, a repressão a esse tipo de eventos continuou, o que acarretou até em intimações direcionadas a alguns nomes por trás de alguns bailes em uma tentativa de sufocar os eventos, que continuaram a acontecer pela cidade, em outras favelas, porém em proporções menores em comparação ao baile do DJ Rennan da Penha.
Acontece que em 2020 e 2021, diante da pandemia de Covid-19, houve a necessidade de parar os bailes mais uma vez. No entanto, as restrições duraram pouco tempo, já que na cidade do Rio de Janeiro as atividades econômicas retornaram gradativamente a partir de junho de 2020 — os shoppings no dia 11 e o comércio de rua e salões de beleza no dia 27. Posteriormente, com a liberação de bares e restaurantes para funcionamento noturno e a permissão de eventos com 1/3 do público, começaram a virar notícia cotidiana os flagrantes de desrespeito às chamadas “Regras de Ouro” estipuladas pela prefeitura para conter a disseminação do vírus.
E com essa movimentação cotidiana, os bailes de favela voltaram a acontecer e, consequentemente, vídeos das aglomerações nas festas começaram a surgir nas redes sociais. Apesar do controverso retorno, os bailes não foram os mesmos.
Nunca tinha visto um baile vazio assim. Nem se eu quisesse aglomerar eu conseguia
Paula Mendes
Paula Mendes, 26 anos, notou a reduzida presença do público: “Nunca tinha visto um baile vazio assim. Nem se eu quisesse aglomerar eu conseguia. Nossa. Cheguei a vir pra Gaiola e não conseguir andar. Ontem [27 de fevereiro de 2021] eu tinha espaço à beça para dançar”. Marcelo, voltou a colocar barraca no baile – que na época acontecia no mesmo lugar onde foi o Gaiola – rebatizado como Pistão da Aimoré, revela: “O faturamento não é mais o mesmo. Tem pouca gente no baile e, quem vem, traz bebida ou gasta pouco. Não está dando para tirar nem 25% do que eu ganhava antes”. Atualmente o baile acontece em um outro espaço, ao longo da rua Aimoré, mais perto da “Pista”, e foi rebatizado de Gaiolinha.”
Aqui a gente não tem nada o que fazer. Ficar só em casa é ruim porque não tem muito espaço e fica todo mundo junto.
O fato é que em muitas comunidades o baile de favela é o único espaço de lazer que essas pessoas têm. Em matéria publicada no site Agência Mural, a fala de um jovem que continuou frequentando bailes durante a pandemia menciona essa escassez e evidencia a problemática da vida nas quebradas: “Aqui a gente não tem nada o que fazer sempre. Ficar só em casa é ruim porque não tem muito espaço e fica todo mundo junto. Quando eu saio, me divirto e dou uma respirada”, desabafa.
Nas favelas da cidade do Rio de Janeiro, falo em especial pelo Complexo da Penha, comunidade onde vivo, não se vê investimento em ações culturais e de cidadania pelo Governo do Estado. Em um plano geral, os únicos meios de diversão e liberdade para os jovens são os bailes e algumas ações pontuais tocadas pelos próprios moradores. Em paralelo, as igrejas neopentecostais também têm atraído o público com a promessa de um futuro diferente por meio da fé, criando discursos que limitam os corpos do prazer e da liberdade.
OS BAILES HOJE
As proibições continuam em 2021. Em meio às várias festas clandestinas e as aglomerações no não-carnaval de 2021, sobretudo em áreas nobres da cidade, os bailes de favelas foram os mais perseguidos.No início de março deste ano, o MC Poze e mais 13 pessoas, incluindo MCs e DJ’s, foram indiciados por “crimes de infração de medida sanitária preventiva, epidemia e associação ao tráfico”, por festas que aconteceram em diversas comunidades durante o período do carnaval. O tratamento não foi o mesmo com as festas da Zona Sul.
Ainda que proibidos, os bailes seguem acontecendo de forma clandestina por serem uma fonte de renda e empregos e também por servirem de espaço de lazer para quem, mesmo diante do agravamento da pandemia, precisa enfrentar o transporte público lotado para trabalhar. Para suspender os bailes de forma sustentável, é preciso uma política efetiva de amparo financeiro aos trabalhadores e artistas ligados à festa, que em sua maioria são pessoas pobres da comunidade tentando sobreviver em meio à crise.
Muito massa o texto, Vanubia. Faltam reflexões sobre o que representa a cultura dos paredões de som no Brasil!