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Bandas de lata e a cultura musical da gambiarra

Soluções caseiras inventadas por crianças e jovens periféricos têm uma densidade histórica ainda pouco documentada.

Desde cedo o ritmo pulsa na vida de Mateus Souza. Maranhense do município de Pedreiras, ele era apenas uma criança quando roubava as panelas e baldes da casa da avó para batucar. Pouco depois passou a frequentar a igreja evangélica com a mãe e foi lá, aos quatro anos, que ele teve seus primeiros contatos com uma bateria. Após o culto, corria para o instrumento e brincava com as baquetas e tambores. Sua habilidade cresceu rapidamente e Mateus virou um músico precoce. Aos oito anos já tocava em alguns cultos. “Eu ficava na bateria e fui pegando esse amor. Aprendi sozinho mesmo, de muito cedo”, conta.

Eu não tinha bateria em casa e minha mãe não podia me dar. Então eu pesquisei no YouTube para saber como montar uma

Mateus Souza

Mateus assumiu oficialmente o posto de baterista na igreja entre os 16 e 18 anos, quando se afastou dos cultos e passou a se interessar por forró. Estava afastado dos cultos, mas a paixão pela bateria ainda continuou. Só lhe faltava o instrumento. “Eu não tinha bateria em casa e minha mãe não podia me dar. Então eu pesquisei no YouTube para saber como montar uma”, explica. Munido de latas de doce e de massa corrida, baldes de tinta, pedaços de ventilador, madeiras e coroas de bicicletas, Mateus, orientado por vídeos tutoriais e ajuda de dois amigos, construiu uma bateria de lata e recicláveis. Fez tudo em duas semanas — “queria montar logo!” — e a bateria ficou pronta entre agosto e setembro de 2018.

E foi nessa bateria de lata que ele fez crescer as suas habilidades enquanto músico. Adotou o nome artístico MS Batera e começou a postar vídeos no YouTube e Instagram tocando músicas de forró. A bateria é caseira e improvisada, mas o som que MS tira é de profissional, com uma batida sincopada cheia de groove e viradas complexas que impressionaram o cantor cearense Matheus Fernandes (do hit “Sonâmbulo” ou “Do Nada Eu Apareço na Balada”), que decidiu lhe dar uma oportunidade.

Em dezembro, poucos meses depois de ter montado a bateria de lata, MS foi convidado a fazer uma participação em uma música num show de Fernandes. MS topou e ensaiou com dedicação por dias em casa, na sua bateria de lata mesmo. Na hora assumiu a bateria “de verdade” no palco, fez sucesso. O seu talento deixou o cantor tão impressionado que ele decidiu presentear o jovem com uma bateria de verdade, para incentivá-lo na carreira.

MS Batera na banda de lata Os Sonâmbulos

MS agora tem uma bateria de verdade e trabalha duro para realizar o sonho de ser músico de um grande cantor de forró, como Safadão ou Xand Avião. Mas salienta que a bateria de lata não é um instrumento menos importante e que nunca vai abandoná-la. “Eu evoluí muito com ela e acho que toco até melhor na bateria de lata. Se não fosse pela bateria de lata, eu não faria as coisas que eu sei hoje”, afirma. MS é parte da banda de lata Os Sonâmbulos, que toca outros instrumentos caseiros e faz vídeos plano sequência com um toque de humor e arte performática — lembra muito os maranhenses do Fundo de Quintal OFC, mas Os Sonâmbulos começaram a postar os vídeos alguns meses antes dos conterrâneos.

A história de MS Batera e sua excelência em criar ritmos a partir das latas mostram como esse instrumento— e outros de sucata — surgem nas periferias como soluções caseiras para contornar o alto custo dos instrumentos musicais tradicionais. Mas não são meros improvisos. Ao contrário, são práticas de gambiarra musical com uma densidade histórica na cultura popular brasileira ainda pouco conhecida.

Uma história a ser contada

Usar latas para construir instrumentos não é exclusividade dos bateristas de forró e também não é uma prática que surgiu recentemente. Em 1930, o cantor, compositor e radialista Almirante foi fotografado utilizando uma “violata”, que parece uma espécie de violão com o corpo feito de latão. Mas, além desse recorte de jornal, não encontrei mais informações sobre o instrumento — nem mesmo na biografia No Tempo de Almirante, escrita pelo historiador Sérgio Cabral.

Almirante e sua “violata”. Recorte de jornal publicado no Portal Luís Nassif.

Em Tijuaçu, comunidade quilombola no semiárido da Bahia, a lata se tornou o instrumento principal de uma importante expressão cultural da identidade negra: o samba de lata. Essa manifestação é protagonizada por mulheres, que formam uma roda na qual uma delas batuca um latão com a mão enquanto as demais cantam e batem palmas ou dançam no centro, batendo os pés para levantar poeira — uma semelhança curiosa com a dança do piseiro.

Samba de lata. Foto: Marcos Cesário

De acordo com as sambadeiras, o samba de lata surge na década de 1930 no contexto das secas e da busca de água na região, onde os recursos hídricos se tornaram propriedades particulares de latifundiários. “A água pra pegar era muito distante. Aí quando as pessoas iam pegar água levavam o pote. Se descansava ali e começava a bater um sambinha pra se animar. E aí começou o samba de lata”, contou a sambadeira Valdelice da Silva em entrevista à TV Escola.

O samba de lata nasce como uma forma de criar um momento de diversão em meio ao sacrifício de caminhar quase 20 km para buscar água. A lata se torna um tambor de som metálico muito especial e contagiante, às vezes parecendo um trovão, como podemos ouvir nas gravações dos CDs Bahia Singular e Plural e da coleção Sambadores e Sambadeiras da Bahia, este lançado pela Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia (ASSEBA).

Mais recentemente a lata passou a servir de matéria prima para fabricação de instrumentos artesanais, especialmente nas cidades no Nordeste. Reconhecido como um dos maiores bateristas do país, Riquelme na Batera fez história na banda Aviões do Forró e iniciou sua carreira tocando uma bateria de lata que construiu aos 13 anos quando morava em Cedro, no interior do Ceará, e não tinha recursos para comprar o instrumento.

Só que Riquelme e MS Batera não são casos isolados de bateristas de lata. A percussão de sucata é uma prática coletiva que atravessa o país e, também, uma forma popular de musicalização de crianças e jovens. As dezenas de vídeos do YouTube que ensinam a montar uma bateria com sucata e fazer a manutenção mostram bem isso, assim como os muitos meninos que postam vídeos tocando como profissionais em suas baterias de latas — que podem parecer precárias, mas não soam dessa forma.

Existem não só bateristas, mas também bandas de lata, formadas em sua maioria por crianças e jovens adultos como uma forma de brincar de música — uma brincadeira séria. Vez ou outra esses vídeos viralizam nas redes, como é o caso da banda Pegada de Pivete. Mas nunca encontrei nenhum estudo que aprofunde o tema enquanto um fazer artístico disseminado coletivamente ou uma espécie de tradição cultural. Contudo, há alguns registros importantes que indicam os primeiros passos dessa história que ainda não foi devidamente contada.

A banda Pegada de Pivete é do povoado de Cerâmica Cil, localizado no Piauí.

Bandas de lata infantis

No ano 2000 a Editora Abril lançou Música do Brasil, um projeto multimídia que inclui livro, box de CDs e uma série documental exibida na MTV Brasil. Comandada pelo antropólogo Hermano Vianna, a equipe viajou o Brasil durante um ano inteiro e registrou mais de 100 manifestações musicais populares, dentre elas as bandas de lata infantis de Nova Olinda, na região do Cariri, Ceará. No livro, Vianna descreve as bandas de lata como “uma instituição musical típica do sertão nordestino, tão típica quanto a banda de pífano ou o trio de baião”.

Toinho fotografado em 1999 no livro “Música do Brasil”. Foto: Ernesto Baldan/Reprodução

O autor então nos apresenta Antônio Pereira Júnior, mais conhecido como Toinho, líder da banda Dragões do Forró. Toinho construiu com sucata todos os instrumentos do seu grupo: bateria, saxofone, guitarra e baixo. A guitarra e o baixo, no entanto, eram mudos — os músicos faziam mímica e emulavam o som com a boca. Hoje com 33 anos, Toinho, que tocava um saxofone feito com cano hidráulico, relembra aquela fase da vida com alegria. “Era bom demais aquele tempo. Eu tinha uns 9 ou 10 anos, por aí. Fazia todos os instrumentos. Tinha uma caixinha de ferramenta e cortava as latas com uma faca e martelo e um serrote pra serrar madeira”.

A Dragões do Forró costumava fazer shows na Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, ONG fundada pelo casal de músicos e arqueólogos Alemberg Quindins e Roseane Lima Verde, que se tornou um espaço importante para a cultura das bandas de lata infantis. Entre o fim dos anos 90 e início dos 2000, a Fundação realizou o Festlata, um concurso que reuniu várias bandas de lata do município.

Em cada rua tinha uma banda de lata. Esse era o som dos quintais da infância, a gente brincava de música

Aécio Diniz

“As crianças que tivessem mais ritmo e ganhassem o festival automaticamente ficariam participando de um laboratório de música da Fundação”, conta Aécio Diniz, que participou do festival na época e atualmente coordena a área de música do centro cultural. “Em cada rua tinha uma banda de lata. Esse era o som dos quintais da infância, a gente brincava de música”, diz Aécio. “Tem a ver com a cultura e como, a partir da criatividade, a criança pode pensar, criar, inovar, brincar com a música”.

Ele tinha 9 anos quando começou a fazer seus instrumentos. Ficou fissurado por instrumentos musicais quando viu uma banda de baile de forró no município e a partir disso resolveu inventar os seus próprios instrumentos. “Acho que depois de ver os instrumentos de verdade, que eu não tinha, foi que começou a ideia de fabricar, de montar uma reprodução do que era desejado”. Seu foco foi a bateria. Para fazer os pratos ele contou o fundo de latas, empilhou e amarrou tudo com borracha de estilingue. O chimbal foi feito com tampinhas de doce. Uma lata de cera foi revestida com plástico e se tornou a caixa.

Banda de Lata. Foto: Acervo Fundação Casa Grande

E ainda tinha os efeitos especiais. “A gente brincava também no quintal da casa de um primo meu. Meu pai e os meus tios sempre foram marceneiros e trabalhavam com meu avô. A gente pegava duas latas de óleo, furava elas, enchia de pó de serragem e aí queimava embaixo. Ficava aquele fumaceiro e a gente começava a tocar, como se fosse a máquina de fumaça. Enchia a casa da minha tia de fumaça, os vizinhos ficavam reclamando, uma gritaiada danada”. Após o Festlata, a Fundação Casa Grande montou a banda da Fundação, também com o nome Dragões do Forró, da qual Aécio fez parte. O grupo participou do espetáculo Mãe Gentil, do coreógrafo Ivaldo Bertazzo com participação do cantor Zeca Baleiro e outros músicos.

No ano 2000, o espetáculo fez uma temporada de apresentações no Rio de Janeiro e outra em São Paulo — e a Dragões do Forró esteve lá. A banda de lata da fundação passou a se chamar Os Cabinha e está em sua quarta geração — os integrantes são trocados conforme as crianças vão crescendo.

As bandas de lata continuam se proliferando e assumindo diversos formatos e gêneros musicais. Do município de Itaberaba, sertão da Bahia, os youtubers do canal #Biris montaram bateria e bacurinha com materiais recolhidos do lixo e fizeram sucesso parodiando um show de pagodão, brincando com as danças, os gritos de “sucesso!”, os “alôs” para a prefeitura e polícia, as máquinas de fumaça e outros chavões do gênero.

No Maranhão, Os Sonâmbulos e Fundo de Quintal OFC elaboram um tipo de arte-total, que envolve experimentação audiovisual, arte performática contemporânea e música, sempre conduzido por uma atmosfera de diversão espontânea. São artistas que mostram como as bandas de lata bebem de uma série de práticas históricas ao mesmo tempo em que se transformam nos códigos de filmagem dos smartphones e das redes sociais.

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