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Arte: Rafael Olinto

Jadsom do Psirico e a bacurinha no pagodão baiano

Conheça a história do percussionista baiano que reinventou a sonoridade do instrumento criado por Carlinhos Brown.

Embora hoje pareça trivial associar a bacurinha ao pagodão baiano, seria uma ingenuidade naturalizar esse enlace. Mesmo reconhecendo que as histórias se cruzam a ponto de se confundirem, é possível notar que esse encontro é algo bem recente na história desse gênero musical. Enquanto a raiz do pagodão está no samba de roda do Recôncavo baiano, uma tradição que data de 1860, a bacurinha só surgiu no começo da década de 1990.

Tudo começou quando Carlinhos Brown resolveu montar um instrumento menor que o repinique – que mede 12 polegadas. Com apenas 8 polegadas, a bacurinha é um instrumento tocado com baquetas de silicone, que fica posicionado entre as pernas dos percussionistas (daí vem o nome) e foi criado com a proposta de acompanhar os timbais da Timbalada. Desse momento como coadjuvante ao protagonismo no swing do pagodão, desenrolaram-se experimentações que paulatinamente foram dissolvendo no tempo.

Para entender um pouco mais sobre esse processo, conversamos com Jadsom, bacurinista da banda baiana Psirico, o cara que levou o instrumento ao centro da sonoridade do pagodão e criou toda uma linguagem própria que hoje é referência até para percussionistas de outros gêneros musicais.

Em 2001, após assistir a dois ensaios do Psi (nome pelo qual o Psirico também é conhecido), Jadsom recebeu um convite de dois amigos que integravam a banda. A missão era temporária, cobrir em um único show a ausência de Serginho, percussionista responsável pela caixa malacacheta. Segundo Jadsom, a bacurinha até então não fazia parte dos instrumentos do Psirico. “O swing era todo feito em cima da caixa malacacheta, que é aquela caixa de escola de samba. Até nisso o Psirico inovou, que foi a primeira banda a usar”, explicou.

Não rapaz, você tá na banda! Você vai tocar bacurinha!

Márcio Victor (Psirico)

O músico confessou ter ficado com medo do desafio. “Caramba, véi, isso aí é o coração da banda e os caras me deram essa responsabilidade, mas falei ‘vamo lá, vamo encarar’”. Após o evento, Jadsom chamou Márcio Victor (vocalista do Psirico) num cantinho do camarim, expressou admiração pelo trabalho dele, agradeceu o convite e já pensava em se despedir quando o mesmo reagiu categoricamente: “Não rapaz, você é maluco, é? Você tá na banda! Você vai tocar bacurinha!”. A reação foi de surpresa: “Aí eu dei uma paralisada, porque não imaginei que ia entrar na banda”, relatou o percussionista.

Jadsom em ação no Psirico. Foto: Acervo pessoal

Convite aceito, Jadsom agora tinha a missão de introduzir a bacurinha no suingue do Psirico, isso numa fase em que o instrumento ainda estava chegando ao pagode baiano, como ele conta. “A gente começou a mudar a percussão de pagode, que basicamente era pandeiro, tamborim, surdo e conga ou timbal. A bacurinha entrou pelo Harmonia do Samba, mas era usada de outra forma, eles tocavam com as duas mãos e naquela clave… (o músico simula a batida com a voz, representada abaixo na partitura 1)”. O pioneirismo foi explicado na sequência: “Eu acho que fui o primeiro a tocar o… (dessa vez simula a batida referente à partitura 2), que era o meu jeito de tá perto da caixa de Serginho. Para mim, a caixa sempre foi a referência de clave e de suingue”, disse Jadsom.

Partituras 1 e 2 transcritas por Tainá Menezes, com revisão de Beto da Xambá.

Daí para frente parece até que as coisas aconteceram muito rápido. Na manhã do dia 02 de fevereiro de 2003, o Psirico subiu em um dos maiores palcos do país naquela época, era a primeira apresentação da banda no Festival de Verão de Salvador (FVS), com um realce acidental para a bacurinha na mixagem do show. “O CD desse show foi mal gravado. No começo (da apresentação) só tem cavaco, bacurinha e voz. Dá pra ouvir o groove da bacurinha todinho”, contou o percussionista.

Esse disco gravado no FVS se tornou uma febre nos camelôs pelo Nordeste, assim o Psirico que já vinha com a proposta de potencializar uma personalidade percussiva singular, com a forte influência da bacurinha de Jadsom, provocou uma virada estética no pagode. Sentenciando simbolicamente uma profecia que Márcio Victor teria feito para o bacurinista logo no primeiro ensaio. “Ele falou assim: ‘Tá gostando, vei? A gente tá chegando aí agora pra mudar tudo. Vamo mudar o pagode’”. 

Percussão e invenção

Jadsom encontrou um ambiente aberto para experimentações que se tornou um dos principais motores para a fluidez da inventividade. Com os elogios e incentivos de Márcio Victor tudo ficou mais fácil. “Chegou uma época que ele falou: ‘Não se preocupe com a base. Não se preocupe, é a base com variações’. Então fiquei criando, criando… Sempre introduzindo variações e essas variações começaram a virar convenções, intervenções, começou a influenciar outros músicos, até que saiu o CD que tinha a música Sambadinha”, disse o músico. O disco citado por Jadsom foi a oportunidade de ser notado. “Tinha uns rufos longos e acho que daí começaram a me perceber como percussionista, como um músico novo na Bahia, um músico influente. E junto com isso, tanto a bacurinha quanto a percussão de pagode mudou”, relembrou.

VariaçõesSurgem espontaneamente, são feitas individualmente pelo músico, soam como pequenas mudanças na forma de executar a estrutura rítmica base que se estabelece na música.
IntervençõesAssemelham-se às variações, também podem ser espontâneas e feitas individualmente, mas duram um pouco mais, marcam melhor uma quebrada na base rítmica. (a famosa metralhada é um exemplo de intervenção)
ConvençõesSão intervenções percussivas feitas em grupo, geralmente ensaiadas e executadas por mais de um músico. Soam como uma virada bem marcada na música, com a possibilidade de serem feitas juntas com músicos de instrumentos harmônicos.
Exemplos de variação, intervenção e convenção – Partituras transcritas por Tainá Menezes, com revisão de Beto da Xambá

Nessas trocas de aprendizados e experimentações no Psi, Jadsom imprimiu invenções marcantes, hoje referências para percussionistas não só do pagodão baiano. Por exemplo, por influência de Márcio Victor ele incorporou um toque de candomblé conhecido como agueré (ver partitura 3) ao seu repertório de variações. “A primeira vez vi Márcio fazendo, soava como fogos de artifício”, revelou.

Partitura 3 – Transcrita por Tainá Menezes, com revisão de Beto da Xambá.

Jadsom também buscou conectar influências africanas cosmopolitas no seu repertório. “A primeira coisa que me apaixonei logo foi o Youssou N’Dour, que tem uma pegada pop, mas tinha forte presença da percussão. Tinha um instrumento chamado sabar e comecei a prestar muita atenção nele, que tem várias timbragens, várias afinações. Comecei também a procurar discos de Mamady Keïta, Cheik Lô, Salif Keïta… Roubei alguns de Márcio…”, brincou. Da América Latina, buscou referências em nomes como o percussionista Karl Perazzo, que toca timbales com o guitarrista Carlos Santana. Foi em Perazzo que Jadsom se inspirou para criar o rufo que hoje é conhecido como metralhadora (ver partitura 4 e vídeo abaixo), talvez a variação de bacurinha mais popular hoje.

Partitura 4 transcrita por Tainá Menezes, com revisão de Beto da Xambá.

Com a ideia de mexer no set percussivo, Jadsom investiu em mais bacurinhas, trabalhando-as juntas com outros instrumentos percussivos de sonoridades próximas, para evitar o “cancelamento”. “Nos primeiros shows tocava com uma bacurinha só. Só que, como eu dava muita nota junta com as duas mãos, rola uma parada da física que é o cancelamento. Quando você bate duas notas no mesmo lugar, acaba uma cancelando a outra”, explicou.

Quando o músico percebeu esse fenômeno, decidiu inserir duas bacurinhas e mudar a afinação de uma delas para os sons ficarem distintos “e o molho ficar diferente de tocar”. Além disso, Jadsom percebeu a necessidade de fazer variações graves, já que a bacurinha só trabalha com variações agudas. “Botei um tom de 8, botei uma caixa de 10, botei o tamborim, porque o tamborim é a chave, é o samba. Nunca vou esquecer o tamborim porque eu sou o samba. Aí botei uma trave de bateria pra comportar o set e fui fazendo as mudanças estéticas”.

No Psirico aprendi a ver a percussão de outra forma, me profissionalizei

Jadsom

Depois disso vieram os rototoms e, já pensando na eletrônica, a SPD-S (Jadsom foi primeiro músico a usar esses dois instrumentos no pagode). “O Psirico foi o primeiro a tocar com a banda toda eletrônica, de sample tocado”, revelou o percussionista baiano. Por fim, no empenho de tirar o máximo de proveito das possibilidades com a bacurinha, o percussionista saltou à engenharia do instrumento. “Comecei a montar minhas bacurinhas. Fui num luthier, fiz minhas bacurinhas reduzidas, fui o primeiro também a fazer (o instrumento) de 6 polegadas. No Psirico aprendi a ver a percussão de outra forma, me profissionalizei”, disse orgulhoso.

Antes do Psirico

Mesmo tendo fixado a carreira no Psirico, a trajetória de Jadsom como percussionista é mais antiga. Filho de uma família ligada ao candomblé e aos blocos afros, ele passou a infância brincando no terreiro da família materna, ouvindo os toques dos tambores, sentindo de pertinho o Ilê Aiyê.

O Olodum é influência total na minha vida. Eu amo muito.

Jadsom

A família acabou sendo a maior influência na carreira. Assistir, por exemplo, o tio Sargento (que apesar do apelido, não era militar) desfilar nos sambas juninos foi seminal. “Uma vez vi meu tio tocando e aquilo me emocionou muito, porque ele vinha tocando timbal no arrastão e aí na hora que começamos a andar ao seu lado, vi ele muito emocionado de ver a família”, relembrou, descrevendo o sentimento daquele momento. “Ele começou a tocar o timbal de uma maneira muito mágica. Aquilo foi muito mágico pra mim, eu era criança, tinha sete anos e me marcou muito. Pensei logo ‘Quero fazer isso também, quero me emocionar assim e emocionar as pessoas´”, disse.

A relação com a percussão vem de berço. Foto: Acervo pessoal

Esse vínculo afetivo com a percussão fez parte das brincadeiras com os amigos, batucando nas latas, tentando emular os sons do Olodum. “Aos 5 anos eu tinha um vizinho que sempre tocava o disco do Olodum e aí isso começou a me marcar muito. O Olodum é influência total na minha vida, eu amo muito”. Foi batucando músicas do bloco afro com os amigos que, aos 12 anos, Jadsom começou a tocar numa banda percussiva formada por crianças, convidado pelo percussionista Ailton, conhecido por “Inho Cabeça de Cogumelo”. “Foi aí que iniciei minha carreira e não parei mais, porque eu comecei a tocar com essa banda e logo foram me chamando para outras bandas de outros bairros”, relembrou.

Assim, Jadsom transitou por diversos grupos percussivos numa época em que os bairros de Salvador borbulhavam com novas bandas afros. Em 1997, com 14 anos, o músico entrou no grupo Swing Maneiro (depois renomeado como Berimbau), foi quando teve o primeiro contato com a bacurinha, por intermédio de Budego, mestre percussivo da banda e uma figura crucial na sua carreira. “Ele me dizia: ‘Rapaz, seja diferente, véi. Se o cara toca com o instrumento apertado, toque folgado, mas sempre faça diferente. Se o cara fizer a levada assim de trás pra frente, faça de frente pra trás’”. Mais do que um mestre percussivo, os ensinamentos de Budego extrapolaram a esfera musical.

A dedicação o levava a passar na casa das crianças para pedir autorização aos responsáveis para levá-las aos ensaios e apresentações.“Ele foi um cara que salvou muita gente com a música, porque tirou várias pessoas do crime. A gente sabe que quem vive na periferia corre esse risco de entrar no caminho do crime. Às vezes é o único caminho ou o caminho mais fácil”, relatou.

Ele fazia ritmo com as ferramentas quando tava trabalhando. Pensando nas levadas batendo no portão. Então as levadas tinham tudo nome de ferramentas

Jadsom (sobre Mestre Budego)

Budego também foi referência nos processos criativos.“Foi o primeiro cara que vi fazer variação na bacurinha no pagode, o primeiro que vi raspar as baquetas da bacurinha pra dar flexibilidade a elas e deixar mais confortável o toque”, disse Jadsom. Além de músico, Budego era ferreiro, fabricava portões, grades e também instrumentos.“Ele fazia ritmo com as ferramentas quando tava trabalhando. Pensando nas levadas batendo no portão. Então as levadas tinham tudo nome de ferramentas, tinha uma que se chamava ‘ferramenta’, uma outra ‘martelo talhadeira’, outra que era ‘martelo, talhadeira e chave de fenda’. Ele fazia altos instrumentos massa, lembro que na época me deu uma bacurinha”.

A banda de Budego, portanto, foi uma escola para Jadsom em muitos sentidos. Lá, inovar era uma necessidade prática, os ritmos estavam na rotina e, no meio disso, a bacurinha era um desafio. Nesse primeiro momento, os parâmetros para tocá-la partiram das audições da Timbalada, sendo o grupo fundado por Carlinhos Brown a referência mais forte de como usar o instrumento na época. “Quando ouvi a Timbalada, me chamou muita atenção a forma como eles usavam os instrumentos. Tinha uma diferença que, quando você ouve o Olodum, os repiques funcionam juntos com as caixas, então fica uma pegada muito uníssona, tipo (nesse momento Jadsom simula a batida com a voz, fazendo referência à partitura ´Olodum´), fica tarol e repique muito junto. A Timbalada já vinha tudo mais explicado, separado… (simula mais uma vez a batida, dessa vez fazendo referência à partitura ´Timbalada´)”.

Partitura transcrita por Tainá Menezes, com revisão de Beto da Xambá.
Partitura transcrita por Tainá Menezes, com revisão de Beto da Xambá.

Blocos de rua, palcos e estúdio

Jadsom deixou a Swing Maneiro somente quando o próprio Budego pôs um fim à banda para seguir como percussionista nas bandas de pagode. Era um momento em que grupos como Gerasamba, Terrasamba, É O Tchan! e, logo depois, o Harmonia do Samba, estavam começando a ocupar espaços antes exclusivos da axé music. Jadsom, já decidido em investir na carreira como percussionista, não deixou de tocar, passou a integrar a Zorra e Cia, outra banda percussiva. Contudo, lá passou pouco tempo, migrou para a Reboliço, uma banda baile onde participou de concursos de quadrilhas juninas e, posteriormente, se viu músico de pagode. “Toquei uns dois anos com quadrilha, que foi uma experiência maravilhosa também, fomos campeões de vários concursos. Só que aí como o pagode tava muito em alta, essa banda baile mudou pra banda de pagode. Acabou mudando a banda inteira, praticamente só ficou eu da outra formação, aí que o pagode começa a entrar na minha vida”.

A passagem de Jadsom para os palcos, o diálogo com o pagode e também a relação com músicos mais velhos, já profissionais, proporcionaram uma abertura dentro do mercado de bandas de bairros, fazendo-o tocar em várias delas, como a Reboliço, a Banda Quebra Face, a Banda Sai da Frente, dentre outras. Nesses encontros e trânsitos entre bandas, conheceu músicos essenciais na carreira, como Ronaldo, o responsável pelo primeiro instrumento que ganhou na vida – um timbal, Jean, e a dupla David Batera (atualmente baterista de Leo Santana) e Alisson Max (atualmente vocalista em carreira solo), integrantes do Psirico naquela época e responsáveis por convidá-lo para a banda.

Com toda essa bagagem, Jadsom aponta para a relevância de todas essas experimentações, que vieram a se consolidar na música brasileira. “A base do forró tem o pagode hoje, tem a conga e a bacurinha o tempo todo. O próprio uso do rototom, que eu trouxe pra percussão do pagode, tem uma presença muito forte, Saia Rodada, Aviões, Solange…O sertanejo também usa muito as bases de pagode, tá diminuindo eu acho, mas teve uma fase que tava muito forte, botando umas levadas…”, explicou.

E mesmo confinado em casa por causa da pandemia, a produção do músico não para, movimentando o Instagram com composições próprias. Uma face da carreira que apesar de pouco conhecida, ora ou outra tem aparecido, como contou em entrevista ao canal do amigo Gresko. “Eu sempre escrevi, sempre compus, escrevi [Sou] Favela (sucesso com o Parangolé]), música minha e de Nenéu… E agora na quarentena, com mais tempo em casa, parei de viajar e tocar, comecei a pegar o violão assim… E eu tô num intuito de escrever coisas que defendam a nossa raça, que briguem com o racismo, uma coisa que me dói muito”, desabafou o músico.

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José

Linda história do Jadson, músico que revolucionou a bacurinha no pagodão.